Impressão

Tenho a impressão que a vida, as coisas foram me levando. Levando em frente, levando embora, levando aos trancos, de qualquer jeito. Sem se importarem se eu não queria mais ir. Agora olho em volta e não tenho certeza se gostaria mesmo de estar aqui.”

. Caio Fernando Abreu in Triângulo das Águas .

Esse livro sou eu!

Em uma outra vida que tive, aos 15 anos, entrei numa livraria, que me pareceu o mundo que gostaria de morar. De repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu!

{ Clarice Lispector }

Clarice estava se referindo a Katherine Mansfield, nascida na Nova Zelândia, filha de pais ingleses e que abandonou o clima agradável, a vida abastada na bela ilha para entregar-se com paixão a seu intuito de tornar-se escritora.

Mas eu, ao postar essa citação, me refiro a própria Clarice Lispector. Quando abri A Paixão Segundo G.H. e comecei a ler, aconteceu-me o mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu!

Em algum momento…

Não tenho a pretensão de que todas as pessoas que gosto, gostem de mim. Nem que eu faça a falta que elas me fazem, o importante pra mim é saber que eu, em algum momento, fui insubstituível. E que esse momento será inesquecível

. Mário Quintana .

Apenas

♪ Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo presa na poeira ♪

. Gonzaguinha .

Sofrimento

Dizem que os seres humanos se elevam pelo sofrimento, e que para progredirem neste ou em outro mundo hão de passar pela prova de fogo. Assim nos sucedeu ─ e com que ironia! Ambos conhecemos o medo, a solidão e a grande, a grande tristeza. Suponho que sobrevém um momento de provação na vida de todos nós. Cada um de nós tem o seu demônio, que nos instiga e atormenta, e a quem temos que dar combate. Eu e ele vencemos o nosso, ou pelo menos assim me parece“.

. Daphne Du Maurier in Rebecca .

Roubo de Livros

No terceiro ano da graduação, tivemos uma matéria chamada História da Literatura, e nem preciso dizer que foi a minha favorita. A professora pediu como trabalho de conclusão que apresentássemos para a sala um dos temas de um livro de mesmo nome. Eu e meu grupo escolhemos o tema Roubo de Livros e fui eu, vestida de preto e com um capuz, que apresentei diante da sala o monólogo que deixo abaixo. O cenário foram livros e velas acesas numa sala plena de escuridão. Realmente foi um dos trabalhos que mais adorei fazer.

Estou prestes a me mudar novamente. Em torno de mim, na poeira secreta de cantos insuspeitos, revelados agora pelo deslocamento dos móveis, elevam-se pilhas instáveis de livros, como rochas desgastadas pelo vento numa paisagem desértica. Enquanto ergo pilha após pilha de volumes familiares (reconheço alguns pela cor, outros pela forma, muitos por detalhes nas capas, cujos títulos tento ler de cabeça para baixo ou de um ângulo esquisito), pergunto-me, como já fiz tantas vezes, por que guardo tantos livros que sei que não lerei novamente. Digo a mim mesmo que, sempre que me desfaço de um livro, descubro dias depois que era exatamente aquele que estava procurando. Digo a mim mesmo que não existem livros (ou poucos, muito poucos) em que eu não tenha achado alguma coisa que me interessasse. Digo a mim mesmo que os trouxe para dentro de casa por algum motivo e que esse motivo pode surgir novamente no futuro. Invoco desculpas: meticulosidade, raridade, uma vaga erudição. Mas sei que a razão principal de me apegar a esse tesouro sempre crescente é uma espécie de ganância voluptuosa. Adoro olhar para minhas prateleiras lotadas, cheias de nomes mais ou menos familiares. Delicio-me ao saber que estou cercado por uma espécie de inventário da minha vida, com indicações do meu futuro. Gosto de descobrir, em volumes quase esquecidos, traços do leitor que já fui – rabiscos, passagens de ônibus, pedaços de papel com nomes e números misteriosos, às vezes uma data e um local na guarda do livro, levando-me de volta a um certo café, a um quarto de hotel distante, a um verão longínquo. Eu poderia, se precisasse, abandonar esses livros e começar de novo, em outro lugar, já fiz isso antes, várias vezes, por necessidade. Mas então tive de reconhecer também uma perda grave, irreparável. Sei que algo morre quando abandono meus livros e que minha memória insiste em voltar a eles com uma nostalgia pesarosa. E agora, com os anos, minha memória relembra cada vez menos e parece-me una biblioteca saqueada: muitas das salas foram fechadas, e, nas abertas para consulta, há enormes vazios nas estantes. Pego um dos livros remanescentes e percebo que várias páginas foram arrancadas por vândalos. Quanto mais decrépita minha memória, mais quero proteger esse repositório do que li, essa coleção de texturas, vozes e odores. A posse desses livros tornou-se fundamental para mim, porque agora sinto ciúme do passado.

Alberto Manguel in Uma História da Leitura

Verdade

{…} a única verdade é que vivo. Sinceramente eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais

. Clarice Lispector in A Paixão Segundo G. H. .

A Biblioteca à Noite

Atribuímos às bibliotecas certas qualidades de nossas esperanças e pesadelos; acreditamos compreender bibliotecas evocadas de entre as sombras; imaginamos livros que deveriam existir para o nosso deleite e nos entregamos à tarefa de inventá-los sem temor à imprecisão ou à tolice, à cãibra ou ao ‘branco’, às limitações do tempo e do espaço. Os livros sonhados por contadores de histórias sem peias compõe uma biblioteca bem mais vasta do que aquelas nascida da invenção da imprensa; talvez porque o reino dos livros imaginários permita a existência possível de um livro, ainda não escrito, que escape a todos os erros e imperfeições a que estamos condenados. No escuro, sob minhas duas árvores, meus amigos e eu acrescentamos desavergonhadamente aos catálogos de Alexandria estantes inteiras de volumes perfeiros que desaparecem sem deixar vestígios ao raiar do dia”.

. Alberto Manguel . / Companhia das Letras – 262 págs /

Mais um para a minha pequena lista dos *Eu quero* (rs). Mais informações sobre o livro: Porque ler “A Biblioteca à Noite”?

Fragmento 139

Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação. Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho. Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora – visto com ouvido – o som súbito do elétrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva. Há muito tempo que não sou eu

. Fernando Pessoa .