Roubo de Livros

No terceiro ano da graduação, tivemos uma matéria chamada História da Literatura, e nem preciso dizer que foi a minha favorita. A professora pediu como trabalho de conclusão que apresentássemos para a sala um dos temas de um livro de mesmo nome. Eu e meu grupo escolhemos o tema Roubo de Livros e fui eu, vestida de preto e com um capuz, que apresentei diante da sala o monólogo que deixo abaixo. O cenário foram livros e velas acesas numa sala plena de escuridão. Realmente foi um dos trabalhos que mais adorei fazer.

Estou prestes a me mudar novamente. Em torno de mim, na poeira secreta de cantos insuspeitos, revelados agora pelo deslocamento dos móveis, elevam-se pilhas instáveis de livros, como rochas desgastadas pelo vento numa paisagem desértica. Enquanto ergo pilha após pilha de volumes familiares (reconheço alguns pela cor, outros pela forma, muitos por detalhes nas capas, cujos títulos tento ler de cabeça para baixo ou de um ângulo esquisito), pergunto-me, como já fiz tantas vezes, por que guardo tantos livros que sei que não lerei novamente. Digo a mim mesmo que, sempre que me desfaço de um livro, descubro dias depois que era exatamente aquele que estava procurando. Digo a mim mesmo que não existem livros (ou poucos, muito poucos) em que eu não tenha achado alguma coisa que me interessasse. Digo a mim mesmo que os trouxe para dentro de casa por algum motivo e que esse motivo pode surgir novamente no futuro. Invoco desculpas: meticulosidade, raridade, uma vaga erudição. Mas sei que a razão principal de me apegar a esse tesouro sempre crescente é uma espécie de ganância voluptuosa. Adoro olhar para minhas prateleiras lotadas, cheias de nomes mais ou menos familiares. Delicio-me ao saber que estou cercado por uma espécie de inventário da minha vida, com indicações do meu futuro. Gosto de descobrir, em volumes quase esquecidos, traços do leitor que já fui – rabiscos, passagens de ônibus, pedaços de papel com nomes e números misteriosos, às vezes uma data e um local na guarda do livro, levando-me de volta a um certo café, a um quarto de hotel distante, a um verão longínquo. Eu poderia, se precisasse, abandonar esses livros e começar de novo, em outro lugar, já fiz isso antes, várias vezes, por necessidade. Mas então tive de reconhecer também uma perda grave, irreparável. Sei que algo morre quando abandono meus livros e que minha memória insiste em voltar a eles com uma nostalgia pesarosa. E agora, com os anos, minha memória relembra cada vez menos e parece-me una biblioteca saqueada: muitas das salas foram fechadas, e, nas abertas para consulta, há enormes vazios nas estantes. Pego um dos livros remanescentes e percebo que várias páginas foram arrancadas por vândalos. Quanto mais decrépita minha memória, mais quero proteger esse repositório do que li, essa coleção de texturas, vozes e odores. A posse desses livros tornou-se fundamental para mim, porque agora sinto ciúme do passado.

Alberto Manguel in Uma História da Leitura

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