Ela tem medo de escuro

Roubei daqui

Pequenos trechos do livro que eu nunca escrevi

Ela tem medo de escuro”. Ele achou que tinha dito, mas a voz não saía. Era só um pensamento, um pensamento solitário. Talvez a única frase com nexo que tenha conseguido formular naquele dia. Tentou falar de novo: “ela tem medo de escuro”. Talvez se gritasse, se berrasse, conseguiria. “Ela tem medo de escuro!” e, finalmente, ouviu a sua voz. Mas só um fiapo, um murmúrio, uma oração. Repetiu mais uma vez, duas, três. Talvez ainda não tivesse conseguido falar, talvez fosse ficar mudo definitivamente, porque apesar de seus avisos, de suas súplicas repetidas, eles continuaram, sem pestanejar. Trancafiaram-na lá dentro e agora ele estava ali. Impotente, covarde, um mero espectador assistindo o corpo de alguém ser sepultado. Não era nem uma cova rasa. Era só uma gaveta, uma gaveta de cimento escura e sombria, o melhor que ele pôde pagar”

. Marcele Fernandes .

Fragmento 233

… a tristeza solene que habita em todas as coisas grandes ─ nos píncaros como nas grandes vidas, nas noites profundas como nos poemas eternos”

. Fernando Pessoa in O Livro do Desassossego .

E mais amor…

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor”

. Carlos Drummond de Andrade .