De volta

O líquido gelado aqueceu o interior de seu corpo, enquanto a neve caía indiferente a seus sentimentos, fora do bar perdido num canto efêmero da cidade agitada e barulhenta. Mas nem mesmo o burburinho do bar e a agitação fora dele poderiam aguçar seus sentidos adormecidos agora. Nada poderia tirá-lo da profunda imobilidade, do silencio que feria uma alma já rasgada de dores. Virou a página do livro que lia e o som da página virando pareceu-lhe o único audível no local. Seus olhos percorreram as letras que descreviam horrores, sonhos, amores, desilusões, um resquício da vida de alguém, escondida entre as palavras, riscos, frases, camuflada nos sentidos translúcidos de meias-verdades. A pálida luz do bar antigo tingia as páginas amarelas, deixando-as com um tom morto de ouro velho afligindo-o ainda mais, mortificando-o, afundando-o num mar de angústia profundo. A dor, enfim, tornou-se tão insuportável que fechou o livro com força, chamando a atenção de alguns poucos, chacoalhando o copo de vodca e derrubando uma gotícula transparente sobre a capa dura e negra.  A gota deformou por alguns segundos o nome do autor antes de escorrer e pingar no chão pálido, perdendo-se assim como seus sonhos um dia. Não muito à vontade levantou-se, retirando a carteira da jaqueta grossa e pesada. Deixou a nota cobre avermelhado sobre o balcão rústico e ordenou que suas pernas o levassem para fora, para o frio. Seus pés afundaram na neve, e o vento frio cortou seu rosto, seu corpo, sua alma enfraquecida. Enfim, estava de volta.

{ Lyani } 24/02/2002

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