Primavera Tardia

Frio e nuances
De preto e branco
Quero ter outros tons
Florescer
Primavera tardia
Me pintar
Mais intensa
Tons degradê de vermelho

{ Lyani }

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Esta obra está licenciada sob uma Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Brasil License.

Recusam-se a fazer literatura

A mulher se aproxima de Lucio. Você não parece muito contente. Ele senta no chão e esfrega as mãos na areia. Todos buscam o final feliz, o rosto sorridente, romper com o destino natural, evitar a tragédia; perseguem coisas banais e insonsas, leves e afeminadas: recusam-se a fazer literatura”

. David Toscana in O último Leitor .  

Diário da Morte

Veio o verão.
          Para a menina que roubava livros, tudo corria bem.
          Para mim, o céu era da cor dos judeus.

Quando seus corpos acabavam de vasculhar a porta em busca de frestas, as almas subiam. Depois de suas unhas arranharem a madeira, e em alguns casos, ficarem cravadas nela, pela pura força do desespero, seus espíritos vinham em minha direção, para meus braços e galgávamos as instalações daqueles chuveiros, escalávamos o telhado e subíamos para a largueza segura da eternidade. E continuavam a me alimentar. Minuto após minuto. Chuveiro após chuveiro.
Nunca me esquecerei do primeiro dia em Aschwitz, da primeira vez em Mauthausen. Nesse segundo local, com o correr do tempo, também passei a pegá-los no fundo do grande penhasco, onde suas fugas acabavam terrivelmente mal. Havia corpos quebrados e meigos corações mortos. Ainda assim, era melhor do que o gás. Alguns deles eu apanhava ainda a meio caminho da descida. Salvei você, pensava comigo mesma, segurando suas almas no ar, enquanto o resto de seu ser ─ suas carcaças físicas ─ despencava na terra. Eram todos leves, como cascas de nozes vazias. E um céu  enfumaçado nesses lugares. O cheiro fazia lembrar uma fornalha, mas ainda muito frio.
Estremeço ao recordarao tentar desrealizar aquilo.
Bafejo ar quente nas mãos, para aquecê-las.
Mas é difícil mantê-las aquecidas quando as almas ainda tiritam.

Deus.
Sempre pronuncio esse nome, ao pensar naquilo.
Deus.
Duas vezes, eu repito.
Digo o nome d’Ele na vã tentativa de compreender. “Mas não é sua função compreender“. Essa sou eu respondendo. Deus nunca diz nada. Você acha que é a única pessoa a quem Ele nunca responde?Sua tarefa é…” E eu paro de me escutar, porque para dizê-lo curto e grosso, eu canso a mim mesma. Quando começo a pensar desse jeito, fico inteiramente exausta e não tenho o luxo de me entregar à fadiga. Sou obrigada a continuar, porque, embora isso não se aplique a todas as pessoas da Terra, é verdade para a vasta maioria: a morte não espera por ninguém ─ e, quando espera, em geral não é por muito tempo.

 

          Em 23 de junho de 1942, havia um grupo de judeus franceses numa prisão alemã em solo polonês. A primeira pessoa que peguei estava perto da porta, com a mente em disparada, depois reduzida a passadas, depois mais lenta, mais lenta…

 

Por favor, acredite quando lhe digo que, naquele dia, peguei cada alma como se fosse um recém-nascido. Cheguei até a beijar alguns rostos exaustos, envenenados. Ouvi seus últimos gritos entrecortados. Suas palavras evanescentes. Observei suas visões de amor e os libertei de seu medo.
A todos levei embora e, se houve um momento em que precisei de distração, foi esse. Em completa desolação, olhei para o mundo lá em cima. Vi o céu transformar-se de prata em cinza e em cor de chuva. Até as núvens tentavam fugir.
Vez por outra, eu imaginava como seria tudo acima daquelas nuvens, sabendo sem sombra de dúvidas, que o Sol era louro e a atmosfera interminável era um gigantesco olho azul.

Eles eram franceses, eram judeus, e eram você.

A morte, personagem de
Markus Zusak in A menina que roubava livros

I am a Rock

I have my books
And my poetry to protect me
;
I am shielded in my armor,
Hiding in my room, safe within my womb.
I touch no one and no one touches me.
I am a rock,
I am an island.

And a rock feels no pain;
And an island never cries

. Simon and Garfunkel .

[2008] Blog Action Day – Pobreza

Ano passado eu perdi a data de postagem do Blog Action Day, mas prometi a mim mesma que este ano não iria esquecer. Cá estou, em frente ao computador pensando em que escrever sobre pobreza, tema deste ano. Quis muito escrever algum poema de fundo moral bem bonito, ou uma prosa que levasse as pessoas a pensar e quem sabe angariar alguns comentários elogiosos. Mas a única coisa que me veio a mente neste momento é que sou individualista, umbiguista, pessimista, melodramática e mesquinha.

Sim, tudo isso sim. Por ainda achar que falta de um pouco de dinheiro pra pagar aquela conta de roupas que fiz na loja é o fim do mundo. Por ficar desanimada com o que tem no armário pra comer num final de tarde. Por ficar emburrada pela falta de sol no final de semana ou feriado. Por achar que sofro demais num serviço que paga tudo que mais gosto. Por reclamar que tenho que lavar a louça ou arrumar a casa. Por achar que me falta tanta coisa, quando saio do mercado com o carrinho cheio de tudo que mais gosto e mais preciso para sobreviver. Mais do que isso: de tudo que preciso para VIVER bem.

Eu não sei o que é sobreviver. Eu não sei o que é passar tanta fome a ponto do estomago doer e dar vontade de chorar. Eu não sei o que é ouvir um filho pedir comida e dizer pra ele dormir que passa. Eu não sei o que é ter papelão sobre a cabeça em dias de chuvas torrenciais. Não sei o que é lutar por um pedaço de pão com uma pomba na rua. Não sei o que é ser obrigada a andar descalça e pedir esmolas. Não, eu não sei o que é nada disso e ainda assim acho que tudo que eu passo é muito, tudo que eu sofro é demais. Eu não sei de absolutamente nada.

E eu me pergunto o que faço para mudar essa situação? Escrevo? Sim, mas para curar minhas feridas e não as dos outros. Tiro algumas moedas do bolso e deixo em uma mão estendida qualquer? Mão esta que não tem nem rosto pra mim? Não ergo os olhos para ver. Ver dói, ver fere, ver envergonha. Rezo? Nem mesmo isso. Não o faço nem por mim (acho mesmo que precisava) quanto mais pelos outros. Por isso é que repito: individualista, umbiguista, mesquinha, melodramática e pessimista SIM.

Minha culpa. Se andam faltando sorrisos, esperanças, alegrias, purezas, sentimentos no mundo, a culpa é minha também. É muito minha por sequer abrir mão de um único sorriso, de uma única palavra, de um único olhar em direção dos que mais precisam. E não me orgulho.

Da morte de tudo, sofro por tão pouco
Fecho os olhos para não chorar
Estou tão sóbria

Lyani } 03/06/2000

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