Perdoando Deus – O conto na vida.

Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. (…) E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato”.

Clarice Lispector in Felicidade Clandestina .

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E a bagunça na vida dela?

Amélie – Sabe a garota do copo de água?
Pintor – Sei.
Amélie – Se ela parece distante, talvez seja porque está pensando em alguém.
Pintor – Em alguém do quadro?
Amélie – Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar e sentiu que eram parecidos.
Pintor – Em outros termos, ela prefere imaginar uma relação com alguém ausente que criar laços com os que estão presentes.
Amélie – Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.
Pintor – E ela? E a bagunça na vida dela? Quem vai pôr ordem?

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (filme)

Resenha: A Elegância do Ouriço

A Elegância do Ouriço - Muriel Barbery

Livro: A Elegância do Ouriço
Autor(a): Muriel Barbery
Editora:
Companhia das Letras
Páginas: 350

Nota: 5
(sendo: 1- Não gostei 2- Gostei pouco; 3- Gostei; 4- Gostei bastante; 5Adorei)

 

 

[…] afinal, talvez seja isso a vida: muito desespero, mas também alguns momentos de beleza”.

Eu amo citações, e esse livro foi um banquete real em relação a isso. Marquei tantas páginas com post-it coloridos que nem soube quais citações escolher para esta resenha. Este livro ficou parado na estante da minha casa por no mínimo cinco anos. Eu queria muito lê-lo, mas sempre tinha algum outro que acabava entrando na frente. Por fim, depois de ver duas amigas queridas falando muito bem dele, eu decidi começá-lo e já no primeiro capítulo fui pega por uma citação estonteante:

Como sempre, sou salva pela incapacidade dos seres humanos de acreditar naquilo que explode as molduras de seus pequenos hábitos mentais”.

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De um corredor às alamedas

Qual é essa guerra que travamos, na evidência de nossa derrota? Manhã após manhã, já exaustos com todas essas batalhas que vêm, reconduzimos o pavor do cotidiano, esse corredor sem fim que, nas derradeiras horas, valerá como destino por ter sido longamente percorrido. Sim, meu anjo, eis o cotidiano: enfadonho, vazio e submerso em tristezas. As alamedas do inferno não são estanhas a isso; lá caímos um dia por termos ficado ali muito tempo. De um corredor ás alamedas: então se dá a queda, sem choque nem surpresa. Cada dia reatamos com a tristeza do corredor e, passo após passo, executamos o caminho da nossa sombria danação.
Ele terá visto as alamedas? Como se nasce, depois de se ter caído? Que pupilas novas em olhos calcinados? Onde começa a guerra, e onde cessa o combate?

Então, uma camélia.

Muriel Barbery in A Elegância do Ouriço

E o Verbo se Fez Livro…

…Et dans ce livre que tu lis
Je vois que les mots sur la page
Sont le symbole de l’oubli”.*

ARAGON, Le Fou d’Elsa

Mal este livro foi aberto e ele já lhe foge aos olhos, sob o texto que se lê. Todavia, você ainda o segura, você também o vê e o manipula para abri-lo, para virar suas páginas e o fechar. Após algum tempo você o abandona, para logo em seguida retomá-lo, ou simplesmente folheá-lo por um longo período. Este livro não será jogado fora, assim espero. Certamente ele ficará ali, em qualquer parte, talvez esquecido, porém, íntegro, imóvel, paciente, esperando por outras mãos que não as suas e por outros olhares. É bem possível que ele sobreviva a você, mas também é possível que ele seja destruído. O que quer que se passe, uma ligação indefectível entre ele e você já foi tecida. E nas fibras do papel – mais do que nas palavras, cujo sentido se perde – ficará registrado o testemunho desse encontro.

*E neste livro que lês / Vejo que as palavras sobre a página / São o símbolo do esquecimento.

Michel Melot in Livro,