Arrogante

“O ser humano é uma criatura arrogante demais pra quem não passa de um macaco gigante que sabe andar ereto”.

. Hiro Arikawa in Relatos de um Gato Viajante .

COLUNA “Entre Aspas”

Jornal Tribuna Liberal de Sumaré pag. 12

Dica de Leitura: A Garota no Trem – Paula Hawkins

Há muito tempo um livro não me prendia tanto a leitura e isso me deixou muito feliz! Eu li o livro em praticamente um dia. Porque a primeira vez eu li até a página quarenta, na segunda vez que peguei o livro, eu terminei. Fui dormir duas horas da manhã porque era impossível parar a leitura, eu precisava continuar. 

“Nunca entendi como as pessoas podem negligenciar com tanta frieza os danos que causam ao seguir o que manda o coração. Quem foi que disse que fazer o que manda o coração é uma coisa boa? É puro egocentrismo, um egoísmo de querer ter tudo.”

A narrativa dessa autora é fantástica, embora eu não seja uma grande fã de livros escritos em primeira pessoa. Mas a forma como ela vai descrevendo os acontecimentos tanto reais, quanto os que se passam nas cabeças das personagens, é muito envolvente e apaixonante e foi isso que me prendeu a leitura. Isso e o fato de ser um romance mais adulto e psicológico e não tão adolescente. Quando ouvi falar do livro/filme, imaginei algo totalmente diferente do que li e depois assisti (sim, já corri assistir ao filme assim que terminei o livro). 

A história é narrada por três personagens, um recurso que gosto bastante pois deixa tudo mais envolvente e com gostinho de quero mais. Além de te dar três visões diferentes da mesma história, partindo das vivências de cada uma das personagens. Acho isso fantástico unido ao recurso da narrativa em primeira pessoa. Como disse no início, não sou fã, mas quando é bem feito, fica fantástico. 

“De vazio, eu entendo. Começo a achar que não há nada a se fazer para preenchê-lo. Foi o que percebi com as sessões de terapia: os buracos na sua vida são permanentes. É preciso crescer ao redor deles, como raízes de árvore ao redor do concreto; você se molda a partir das lacunas.”

O enredo gira em torno de uma mulher na faixa dos 35 anos, que pega todos os dias o trem até Londres para ir e voltar do trabalho. Ela é a garota no trem e se chama Rachel. Nessa trajetória de ida e volta, ela observa as casas que ficam próximas a linha do trem, e como é muito criativa, cria algumas histórias em sua cabeça para algumas das pessoas que sempre observa da janela. Entre essas casas, está a casa em que ela morava com o ex-marido, Tom. Eles se divorciaram e ele mora na casa com a atual esposa e recém-nascida filha. Rachel ainda não aceitou o divórcio e sofre muito com tudo que tem acontecido. Ela se tornou alcoólatra e sempre acaba fazendo algumas bobagens como ligar para o ex-marido ou ir até a casa dele. Eu me apaguei demais a essa personagem e senti muito as suas dores, é bastante triste a situação em que ela se encontra e é impossível não se envolver. 

“Mas acabei me tornando uma pessoa triste, e a tristeza cansa depois de um tempo, tanto para quem está triste como para todo mundo em volta.”

A segunda personagem é uma mulher que a Rachel observa do trem e cria em sua cabeça que vive um casamento maravilhoso com o marido. Ela dá a essa mulher o nome de Jess e ao seu marido de Jason e fica sempre os observando com um misto de felicidade e inveja pelo que tem e ela acredita ser o amor verdadeiro que todos sonham. A terceira personagem é a nova esposa de Tom, Anna. Ela vive um casamento perfeito, com a filha perfeita na casa perfeita que a Rachel montou. Confesso que tive ódio de Anna por muito tempo durante a leitura. 

Enfim, em um determinado momento do livro uma dessas personagens some e você não sabe se ela viajou, fugiu, foi assassinada, se matou, enfim… E principalmente você não sabe quem fez algo pra ela ou com ela para que ela tenha sumido dessa forma e a partir daí é impossível parar de ler e não querer descobrir o final. Que diga-se de passagem, foi um desfecho ótimo.

“E se aquilo que procuro não puder ser encontrado? E se simplesmente não for possível?”

Li algumas resenhas em que as pessoas não curtiram o final e eu consigo entender o motivo, mas pra mim isso não mudou em nada a riqueza da narrativa dessa história fantástica. Amei a narrativa, adorei a construção das personagens, mas gostei principalmente do que esse livro traz de reflexão sobre a vida, sobre acontecimentos que achamos tão terríveis e que as vezes são nossa libertação de algo pior, e ainda mais importante que isso, uma reflexão sobre a natureza humana e como as aparências enganam e as pessoas nem sempre são aquilo que imaginamos.

Recomendo demais a leitura!!

Vou ficar muito feliz se me escreverem contando o que acharam da leitura!! E se por acaso quiserem alguma leitura específica, podem me pedir pelo email!! Boa semana e ótimas leituras!!

EVELYN RUANI
Bibliotecária e leitora compulsiva! Apaixonada por livros e palavras.
SERVIÇO
Blog: http://blogentreaspas.com
Instagram: @blog_entreaspas
Email: entreaspasb@gmail.com

Atravessava o dia

“Esses eram momentos, em que ela sofria mas amava o seu sofrimento. Atravessava o dia, a necessidade de cumprir os pequenos deveres, a arrumação dos quartos, a espera, a realidade e as ruas”.

. Clarice Lispector in O Lustre .

Lá estava ela

“Não havia quem a salvasse ou a perdesse. E eis que os momentos se desenrolavam e morriam enquanto seu rosto quieto e mudo pairava à espera. Lá estava ela pois. Ainda ontem o prazer de rir fizera-a rir. E à sua frente se estendia todo o futuro”.

. Clarice Lispector in O Lustre .

A CASA DE ASTÉRION

“Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei a seu devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas feminis nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Assim, encontrará uma casa como não há outra na face da Terra. (Mentem os que declaram que no Egito existe uma parecida). Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra história ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não há uma fechadura? Além disso, num entardecer pisei a rua; se antes da noite voltei, fiz isso pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e achatados, como a mão aberta. Já havia se posto o sol, mas o desvalido choro de uma criança e as toscas preces da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns trepavam no estilóbata do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Algum, creio, ocultou-se sob o mar. Não em vão foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que minha modéstia o queira”.

. Jorge Luis Borges in O Aleph .

Palavras

“A meu ver, a conclusão é inadmissível. ‘Quando o fim se aproxima’, escreveu Cartaphilus, ‘já não sobram imagens da recordação; só restam palavras’ Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos”.

. Jorge Luis Borges in O Aleph .

Resenha: Três Coroas Negras

Livro: Três Coroas Negras
Autora: Kendare Blake
Editora: Globo Alt
Páginas: 304
Nota: 3
(1.Não gostei 2.Gostei pouco; 3.Gostei;
 4.Gostei bastante; 5.Adorei)

Três Coroas Negras conta a história de três irmãs gêmeas sombrias e herdeiras da coroa da Ilha de Fennbirn, nascidas com o único propósito de desenvolverem suas dádivas (poderes mágicos) até o dia da Aceleração, evento no qual, aos 16 anos, apresentam seus poderes e a batalha pela coroa começa.

“Na hora de Reinar, apenas uma restará”.

Cada uma delas é criada e treinada em lugares diferentes e são ensinadas a odiar suas irmãs para quando o Ano de Ascensão chegar, estarem prelparadas para matar pela Coroa.

Katherine é uma envenenadora que sabe criar os mais letais venenos, embora não seja tão imune aos venenos como deveria ser. Arsinoe é uma naturalista que pode controlar as feras mais terríveis, muito embora quase à beira de completar seus 16 anos ainda não tenha um Familiar (um animal que deveria controlar e see seu defensor por toda vida) e Mirabella é uma elementar que pode controlar o fogo, os ventos e criar tempestades.

Das três, Mirabella é a mais poderosa, sua dádiva se mostrou perfeita desde criança e ela tem o porte exato para ser A Rainha. Ela é a aposta certa para vencer enquanto as demais estão fadadas à morte certa, não fossem os pesadelos terríveis que Mirabella vem tendo e os questionamentos que vem se fazendo em relação a toda essa tradição sombria.

O livro tem várias reviravoltas e cenas surpreendentes. Tem os elementos necessários para uma trama extremamente emocionante, mas achei a narrativa um pouco fraca e muito pouco detalhada para um mundo fantástico que bem trabalhado seria extremamente primoroso. Ainda assim, é uma leitura gostosa e envolvente e obviamente vou precisar ler a sequência!!

COLUNA “Entre Aspas”

Jornal Tribuna Liberal de Sumaré pag. 12

Dica de Leitura: Não Me Abandone Jamais – Kazuo Ishiguro

NUNCA MAIS ESQUECI!

“Quando a vi dançando aquele dia, enxerguei uma outra coisa. Enxerguei um novo mundo chegando muito rápido. Mais científico, mais eficiente, é verdade. Mais cura para as velhas doenças. Muito bem. Mas um mundo duro, um mundo cruel. E vi uma menina novinha, de olhos bem fechados segurando no colo o mundo antigo e bom de antes, o mundo que ela sabia, lá no fundo, que não poderia continuar existindo, e ela segurando esse mundo no colo e pedindo pra ele não deixá-la partir… Aquela cena me partiu o coração. Nunca mais esqueci”.

Eu vi o filme primeiro. Em 2010. Assim que foi lançado. Lembro de ter ficado olhando para a parede a minha frente uns bons minutos depois que o filme acabou sem saber o que fazer. Sem saber como é que se vive depois daquilo, de verdade. Uma cena específica do filme, acabou comigo e juro que não é spoiler, pode ler: estrada vazia, faróis ligados, Tommy desce do carro vai até a frente dos faróis e começa a berrar e berrar até que cai no chão e Kathy desce do carro e o abraça. Foi aí, nesse ponto que eu perdi minha alma. Eu sei que está parecendo dramático, mas é. É mesmo. O assunto é sério, é dramático, é atual e distópico ao mesmo tempo. Ele traz à tona muitos questionamentos e reflexões. E medos. O filme abriu um buraco que eu tinha que preencher com a leitura do livro que ainda não tinha no Brasil. Mas eu PRECISAVA DELE.

“Não consigo parar de pensar nesse rio, não sei onde, cujas águas se movem com uma velocidade impressionante. E nas duas pessoas dentro da água, tentando se segurar uma na outra, se agarrando o máximo que podem, mas no fim não dá mais. A corrente é muito forte. Eles precisam se soltar, se separar. É assim que eu acho que acontece com a gente. É uma pena, Kath, porque nós nos amamos a vida toda. Mas, no fim, não deu para ficarmos juntos para sempre.”

Quando finalmente consegui ler, me apaixonei ainda mais pelo tema e pela história. Se eu já tinha gostado do filme, o livro era (que surpresa, né gente? rs) ainda melhor. A escrita de Kazuo é delicada e começa tão branda, tão tranquila, como se fosse um diário de memórias de Kathy H. e você vai se apaixonando por ela, pela forma como ela vai se lembrando dos dias no instituto, da amizade, de Tommy, das relações, dos professores, das sensações. É como uma amiga que você faz ao longo da leitura, que te dá a mão e vai te levando por um passeio tranquilo e você vai se deixando levar.

Ao longo da leitura aparecem algumas palavras como doador, cuidadora e você fica se perguntando o que seriam exatamente essas coisas, mas a verdade chega de mansinho e acho que é isso que impacta ainda mais. Você não está preparado pra verdade quando ela chega. E é um soco no estômago, como diria tão bem Clarice Lispector (sobre outro assunto, mas cabe bem aqui).

“Certeza de que estão apaixonados? E como é que você sabe disso? Então acha que o amor é coisa assim tão simples?”

Quando você descobre o que é ser um doador, uma cuidadora, já é tarde demais. Você se envolveu tanto na narrativa, com os personagens, que não tem mais jeito de voltar atrás. E a agonia também é sua, aliás, mais sua. A apatia geral te dá desespero e você se vê querendo entrar lá e chacoalhar aquele mundo de pessoas que no fundo não querem ser chacoalhadas, que aceitaram de uma forma ou de outra um sistema tão bem amarrado, tão bem planejado que não há uma forma de escapar… Nem vontade.

Eu sei que o que estou escrevendo parece confuso, mas não posso escrever mais que isso sem sem estragar a experiência literária de quem for ler esse livro pela primeira vez. É, falando bem basicamente, uma história de amor e perdas, com um plano de fundo digno de uma ficção científica e uma distopia capaz de remexer com tudo dentro de você! A narrativa é misteriosa, você sente que algo precisa e vai ser revelado, mas nada te prepara o suficiente para a verdade.

“É como passar diante de um espelho pelo qual passamos todos os dias de nossas vidas e de repente perceber que ele reflete outra coisa, uma coisa estranha e perturbadora.”

Os próprios protagonistas só entendem completamente o que lhes acontece quando não há mais como voltar atrás. Qual o motivo de viverem no internato? Como foram escolhidos pra isso? O que o futuro guarda pra eles? Tudo isso vai ser respondido na narrativa extremamente bem construída de Ishiguro até a ultima página.

Fico na esperança de passar pra vocês o quanto esse livro me tocou, como pessoa. As sensações e reflexões que ele me trouxe como ser humano. O quanto isso não é tão distante de realidades que já vivenciamos em nosso planeta de outras formas, mas que estão aí e não enxergamos. Também estamos apáticos. E como eu adoro esse tipo de livro/filme que nos tira da zona de conforto e balança tudo que a gente tem por dentro!

“Porque em algum lugar, lá no fundo, uma parte de nós permaneceu igual: receosos do mundo em volta e — por mais que nos envergonhássemos disso — incapazes de deixar o outro partir de uma vez por todas.”

SUPER recomendo a leitura!

Vou ficar muito feliz se me escreverem contando o que acharam da leitura!! E se por acaso quiserem alguma leitura específica, podem me pedir pelo email!! Boa semana e ótimas leituras!!

EVELYN RUANI
Bibliotecária e leitora compulsiva! Apaixonada por livros e palavras.
SERVIÇO
Blog: http://blogentreaspas.com
Instagram: @blog_entreaspas
Email: entreaspasb@gmail.com

Longe de nós

“Vivemos longe de nós, em distante fingimento. Desaparecemo-nos. Porque nos preferimos nessa escuridão interior? Talvez porque o escuro junta as coisas, costura os fios do disperso. No aconchego da noite, o impossível ganha a suposição do visível. Nessa ilusão descansam os nossos fantasmas”.

. Mia Couto in Cada Homem é uma Raça .